Em sentença proferida no último dia 06 de dezembro de 2019, a Juíza da 8ª Vara do Trabalho de São Paulo reconheceu a existência de vínculo empregatício entre os entregadores (motofretistas e motoristas de vans) e a empresa Loggi, prestadora de serviços de entregas, nos autos de uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Trabalho.
A Sentença trouxe uma detalhada análise sobre o trabalho por meio de aplicativos, que inclusive poderá repercutir na relação de trabalho prestada pelos aplicativos de transporte com a Uber, Cabify, 99 etc.
Segundo a julgadora, não há autonomia na atuação dos profissionais, pois, ao colocar sua força de trabalho a serviço do aplicativo, o trabalhador não pode fixar o preço, forma de pagamento, logística, prazos e não define as condições da prestação de serviços, já que tudo isso é feito pelo aplicativo.
A relação do cliente (contratante) é mantida com o aplicativo e não com o entregador – é a empresa quem faz a cobrança dos valores e quem disponibiliza aos trabalhadores as máquinas para pagamento por meio de cartão.
Também não há nenhuma “negociação” no contrato existente entre o prestador de serviços e a Loggi – é necessária a assinatura de um termo de adesão e a efetuação de um cadastro na plataforma.
O entendimento pela existência de vínculo empregatício desses trabalhadores foi fundamentado após apurada análise do cumprimento dos requisitos para tanto, de forma individualizada e resumida da seguinte forma:
- habitualidade: presente na expectativa de prestação de serviços;
- pessoalidade: verificada na impossibilidade de substituição do entregador por terceira pessoa, já que o condutor responsável pela prestação de serviços deve estar cadastrado na plataforma;
- subordinação: na medida em que há controle de produção, tarefas, horário, itinerário e local de prestação de serviços. O condutor não escolhe o cliente ou o serviço, o tempo de entrega precisa ser razoável de acordo com o apurado pela plataforma, que monitora a prestação de serviços.
- onerosidade: presente porque a plataforma paga aos entregadores o valor fixado unilateralmente;
Não há possibilidade de negociação de preços – o entregador recebe o que a plataforma lhe paga. O preço do frete é, então, considerado salário.
A decisão destaca, ainda, que a empresa oferece aos motofretistas jaquetas e baús, mantém canal de apoio para intercorrências nas entregas e coletas, o que evidencia a existência de relação de emprego.
Segundo a julgadora, a nova forma de prestação de serviços não pode colidir com a legislação vigente, que traz os conceitos de empregado e empregador e tampouco pode excluir da proteção social os trabalhadores por aplicativos.
Deixar esses profissionais à margem da proteção social é inconstitucional, viola a garantia da proteção ao trabalho é à dignidade da pessoa humana. É um retrocesso dos direitos sociais a um tempo muito anterior à própria CLT, de 1943.
Como consta da sentença, houve muita luta para que se garantisse direitos trabalhistas mínimos e “a imposição de um patamar mínimo de civilidade é que fará o País progredir, com mais renda e proteção social aos que vendem sua força de trabalho a um aplicativo que também representa progresso.”
E prossegue dizendo que “não há como a nação progredir como tal deixando cidadãos à margem da evolução e das conquistas sociais.”
A decisão consigna, ainda, que não pretende atrapalhar o empreendimento advindo da “brilhante criação plataformas de aplicativos para a facilitação de serviços e de sua prestação”, mas que devem ser respeitados direitos preexistentes e preestabelecidos, para que os ganhos obtidos com essa criação não sejam ofuscados pelo trabalho em condições menos dignas de trabalho.
Com a procedência em parte da ação civil pública, a empresa foi condenada a proceder o registro de seus condutores profissionais que prestam serviços de transporte de mercadorias através de suas plataformas digitais, bem como de se abster de contratar esses profissionais como autônomos.
Deve ainda, sob pena de pagamento de multa:
- observar os requisitos para as atividades de entrega de mercadorias fixadas em lei, exigindo de seus condutores a idade mínima de 21 anos, 2 anos de habilitação na categoria, aprovação em curso do CONTRAN, uso de colete de segurança dotado de dispositivos retrorreflexivos;
- abster-se de contratar condutor inabilitado legalmente e vetar o uso de motocicleta ou motoneta que esteja em desconformidade com as exigências legais;
- abster-se de instituir prêmio por produção, taxa de entrega ou comissão, em caráter individual ou coletivo, como forma de pagamento de salário ou remuneração, não permitindo que os ganhos de produtividade dos seus empregados motociclistas se deem com a intensificação do trabalho ou aumento da carga de trabalho;
- implementar o pagamento de adicional de periculosidade, na base de 30% sobre o valor bruto do frete devido aos seus condutores, em rubrica própria;
- comprovar a disponibilidade de imóvel apto ao estacionamento dos veículos, às dependências para escritório e aos condutores no aguardo de ordens de serviço;
- considerar como jornada de trabalho de seus condutores o tempo de deslocamento até os pontos de coleta e entrega, na condução efetiva do veículo, bem como o tempo integral de coleta e de entrega das mercadorias, aí incluído todo o tempo de espera pelo cliente e para a conclusão do frete aceito;
- implementar de forma efetiva e eficaz o controle da jornada de trabalho dos seus motoristas e condutores profissionais, documentando-a por meio eletrônico que garanta inviolabilidade e inalterabilidade dos eventos informados pelo motorista e captados pela plataforma;
- promover a disponibilização de acesso telemático de informações necessárias à checagem da jornada por parte das autoridades administrativas e judiciais competentes, bem como o acompanhamento e fiscalização por parte dos próprios condutores;
- limitar a jornada diária de trabalho de seus condutores ao máximo de 8 (oito) horas de serviço por dia, observando-se o tempo de condução da moto e de espera para coleta e entrega na realização do frete;
- implementar o período mínimo de 11 (onze) horas consecutivas para descanso entre duas jornadas de trabalho e o descanso semanal de 24 (vinte e quatro) horas consecutivas, de forma automática pelo sistema;
- disponibilizar base para ponto de encontro ou espera, com condições adequadas de segurança, sanitárias e de conforto, para repouso e descanso dos motoristas e condutores profissionais, com o fornecimento de água potável em quantidade suficiente nos locais de descanso;
- adequar e implementar o PPRA, de acordo com a NR 9, reconhecendo e especificando todos os riscos presentes, de acordo com o produto transportado, definindo-se, para cada caso, as medidas de proteção necessárias, incluindo-se os equipamentos de proteção individual obrigatórios às atividades e incluindo no documento as avaliações quantitativas programadas;
- adequar e implementar o PCMSO de acordo com os riscos a que os trabalhadores estão expostos, fornecer capacetes certificados de motociclistas, bem como coletes de segurança dotado de dispositivos retrorreflexivos, a 5.000 condutores dentre os mais ativos em sua plataforma, à sua escolha, exigindo seu uso, com especificação no PPRA;
- contratar seguro de vida em favor dos condutores com cobertura para invalidez permanente.
Além disso, a ré foi condenada ao pagamento de compensação pecuniária de R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais), valor este que deverá ser depositado diretamente junto a instituições beneficentes escolhidas pela empresa dentre as 100 melhores organizações não governamentais brasileiras.
Da decisão, que tem abrangência em todo o território nacional, cabe recurso ao Tribunal Regional do Trabalho.
A questão relativa à existência (ou não) de vínculo de emprego entre trabalhadores e os aplicativos de transporte tem sido constantemente enfrentada pela Justiça e, até o momento, não parece haver uma posição dominante a respeito do assunto.
Em julgado recente, os dez Ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiram, por unanimidade, que motoristas de Uber não têm vínculo empregatício com a empresa e, portanto, não podem reivindicar direitos na Justiça do Trabalho.
Essa decisão foi tomada em um incidente em que se discutia a competência da justiça especializada (trabalhista) para apreciar pedido de indenização feito por um motorista ao Uber e, por isso, não tem eficácia em relação a outros processos.
Fernanda Trocoli - Advogada